Crítica - The Divide
Filmes que envolvem o fim do mundo e o que resta depois deste versam, na maioria das vezes, pelos efeitos especiais e pela estética das cenas. Tsunamis, tornados, meteoros e qualquer tipo de catástrofe surgem na tela para o mórbido divertimento do público. Às vezes, porém, outro tipo de filme aparece: tem o apocalipse como pano de fundo, mas volta os olhos para outra coisa, para aqueles que acabam virando coadjuvantes em blockbusters escapistas: nós, humanos; meros mortais imperfeitos. The Divide, novo longa de Xavier Gens (Hitman e Frontiers), reúne oito estranhos em um abrigo depois que Nova York é completamente destruída em um ataque nuclear. Oito sobreviventes cuja única coisa em comum é o lugar onde viviam: o prédio. Enquanto fugiam do lugar, a passagem principal fica interditada, forçando algumas pessoas a procurarem um local seguro, é em meio ao pânico e muita correria que alguns deles encontram uma porta prestes a ser fechada; eles entram, a porta se fecha e o filme começa. O abrigo, organizado e montado por Mickey, é um espaço gélido, um depósito amplo e cheio de corredores e portas que levam a peças menores. É nesse ambiente que Gens conta sua pequena história de sobrevivência e convivência levada a níveis extremos.
O foco aqui é o limite de cada um, o que cada indivíduo pode fazer para se manter vivo e o quanto pode aguentar trancafiado, sem qualquer tipo de comunicação e com comida escassa. Além de qualquer empecilho, é preciso conviver em grupo, dividir o espaço com pessoas estranhas. Nesse quesito, The Divide se sai surpreendentemente bem. Ainda que os personagens sejam apresentados rapidamente e o espectador deva desvendar cada um a seu próprio modo, pois o roteiro pouco ou nada fornece sobre aquelas figuras, grande parte do grupo ganha um notável desenvolvimento. Cada um possui suas próprias características, e ainda que o roteiro caia em certos clichês em vários momentos (a moça quietinha, a mãe e sua filha com fome, medo e sono, o homem explosivo e misterioso, o apaziguador, o vagabundo...), é notável a preocupação demonstrada com os personagens principais. O choque entre eles é muitíssimo bem desenvolvido, e a veracidade dessas relações prova o cuidado do roteiro e o talento do elenco relativamente desconhecido.
Não espere, contudo, um aprofundado estudo de personagens, uma análise complexa da mente humana e os caminhos que levam à derrocada final; o que se tem aqui é uma interessante abordagem sobre escolhas e destino: o que esperar quando não há nada mais para ser almejado? Para que pensar sobre que escolhas tomar se já não há nada a perder? Estas e outras indagações, ainda que muitas vezes tratadas superficialmente, são levantadas no transcorrer da trama e engrandecem a obra. São filosofias simples, se analisadas com mais afinco, e a maioria delas já fora trabalhada em outras criações literárias, cinematográficas, etc. Gens, que já provara ser um diretor de fitas violentas, aproveita cada momento de tensão para criar sequências angustiantes. Os momentos em que há confrontos verbais e físicos são surpreendentes. A tensão é quase insuportável e o cineasta filma tudo com inteligência e certa economia. Os atores se encarregam do serviço e não decepcionam; uma das provas disso é a sequência de tortura, envolvendo conflitos diversos, discussões paralelas, violência gráfica e urgência. A hora final do longa é um turbilhão de emoções; tudo parece estar perdido e aparentemente não há saída, é então que os nervos se exaltam e The Divide mostra sua força. Não há meios termos, não há delicadeza. Gens não se preocupa com o público, com pudores ou conservadorismos. Humanos se tornam animais enquanto o mundo queima fora do abrigo.
O roteiro é simples e muitas vezes falho, já que alguns personagens são completamente descartáveis; por outro lado, o texto merece elogios pelo fato de não explicar a origem daquelas pessoas e muito menos o que realmente está acontecendo com o mundo. Teorias são lançadas, claro, mas não passam de opiniões pessoais de cada personagem. Seriam árabes? Coreanos? Algumas pistas são deixadas no meio do caminho, e mesmo que o espectador tente montar seu próprio quebra-cabeça, o jogo se desfaz, porém, quando outro detalhe surge na tela. Isso é completamente positivo, já que incita o público a se interessar pelo que se passa e buscar explicações para si. O grande acerto, claro, é aproximar a plateia dos personagens através dessa falta de informações. Sabemos o que eles sabem, vemos o que eles veem, estamos trancados junto aos estranhos. Algumas situações absurdas podem quebrar a regularidade da fita, mas há de se ter paciência, pois nenhuma prejudica a obra permanentemente.
Gens em geral faz um bom trabalho, pecando, hora e outra, pelos excessos. O cineasta investe insistentemente em travellings em que a câmera vai se afastando ou se aproximando dos personagens ou dos objetos; o recurso é repetido do início ao fim e, ainda que funcione muitas vezes, acaba cansando. Outro ponto em que o diretor passa do limite é no uso de suas músicas. Há uma composição instrumental que toca inúmeras vezes durante o filme e acaba incomodando, já que é bem característica e fácil de ser notada; sempre quando quer dar peso dramático para alguma cena, Gens recorre à música. O que deve constar, contudo, é que o sujeito tem considerável apuro visual. A sequência final, por exemplo, é linda, e merece atenção redobrada do espectador, não por conter pistas ou respostas sobre o desfecho e a trama em si, mas por ser esteticamente rica, com bela fotografia. O cineasta também acerta ao usar o som de forma orgânica e positiva, principalmente nos momentos de tensão; ele se sai igualmente eficiente ao usar a geografia do abrigo, indo a quase todos os cantos e entradas do lugar, usando o espaço em benefício da história.
The Divide está longe de ser um filme excelente; é corajoso por abordar certos fatos, por outro lado é nítido que tenta dar passos muito maiores do que as pernas. Bem executado, mas com falhas eventuais, a fita ao menos não deixa o espectador indiferente. Há de se tomar uma decisão acerca do que se vê na tela, positiva ou negativamente. Em suma, temos uma obra exagerada muitas vezes e rala em outras; personagens desenvolvidos e outros inúteis; abordagens profundas e curiosas e outras superficiais e desinteressantes; o fato é que The Divide merece nossa atenção e se esforça para ser importante e relevante. Irá decepcionar, enfim, aqueles que esperam um grande suspense regado a cenas de ação e catástrofe.
Matheus Pereira
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Simplesmente excelente a sua análise. Eu não costumo comentar textos na internet, mas a leitura de sua crítica me forçou a fazê-lo. O texto está muito bem escrito, e os comentários sobre o filme são muito pertinentes e verdadeiros. Eu acabei de ver o filme. Sem dúvidas o filme é forte. Pra assistir todo e sem se contorcer na poltrona o expectador tem que ter muito estomago. A despeito disso eu digo sem medo de errar, vale a pena! O ser humano realmente é apenas um animal. E essas obras nos ajudam a lembrar que não somos tão racionais e superiores quanto imaginamos. Claramente você (autor da crítica) é um especialista sobre o assunto. Parabéns pela análise clara, objetiva e muito sensata. Continue com o excelente trabalho. Passarei a visitar o seu site com frequência. Abraços
Jorge disse...
12 de abril de 2012 às 01:06
Gostei do texto. Pessoalmente achei muitas situações do filme tendendo ao exagero, um terror gráfico demais. Mas o filme provoca, e como vc mesmo disso, impossível sair indiferente depois de uma experiencia dessas. O filme perturba, e se perturbar é um dos objetivos da arte, ele cumpre o seu papel.
Anônimo disse...
12 de abril de 2012 às 17:11
Não concordo com a análise,é difícil fazer um filme assim, os exageros fazem parte da dramaticidade e contam no filme como alternativa estética,outra coisa, explicações demais, levariam 4 temporadas para explicar tudo, no filme todo mundo sofre, até quem está vendo, um ótimo filme,com bons atores, não é uma obra prima,mas diverte.
medicojose disse...
15 de maio de 2012 às 11:34
Acredito que esse tenha sido o filme de suspense que mais gostei. É contagioso, sem perceber eu mexia os braços e levantava do sofá em algumas cenas mais fortes. Totalmente envolvente durante as 2h de duração.
Flávio disse...
29 de maio de 2012 às 10:09